Elementos para uma abordagem em sala de
aula sobre a história do negro no Brasil*
Roger
Elias
Pensemos o negro como tema de sala de aula. Se
nossa perspectiva é trabalhar com uma proposta educacional diferenciada, que
trate da questão da inserção do negro na sociedade brasileira de forma séria e
problematizada, propomos ter em mente três movimentos necessários: primeiro,
romper o silêncio sobre a África; segundo, conhecer as questões debatidas pela
historiografia sobre a inserção do negro na sociedade brasileira (aqui
enfocamos a escravidão); terceiro, perceber que qualquer ação em sala de aula
deve dar-se por uma discussão aberta com os alunos, baseada na historiografia
existente, e não sobre qualquer discurso político, por mais “correto” que possa
parecer.
Romper o
silêncio sobre o negro e a África significa apresentar / questionar com os
alunos algumas questões básicas: onde fica a África, o que ela é, quais são os
povos que a habitam, quais são os hábitos que esses possuem. Numa palavra: é
questionar sobre os elementos básicos formativos da África: suas crenças, suas
práticas religiosas, seus diferentes povos, sua geografia, seus recursos
naturais, sua fauna e flora. Nesse trabalho de questionamento e apresentação, o
objetivo é fazer com que os alunos percebam a diversidade rica que compõe a
África, mostrando como há muito a falar sobre ela, tanto quanto sobre a América
ou a Europa.
É possível trabalhar com esses temas das maneiras mais diversas: com textos, com mapas, com imagens etc. Pedir para que grupos de alunos apresentem um tema de um conjunto (países, fauna, flora, história etc.), usando imagens e texto, pode ser uma boa proposta. Evidentemente, a forma de trabalho e a exigência variam de série para série. De qualquer forma, parece-me que o texto é sempre fundamental, deve aparecer em algum momento, porque possibilita ao aluno um instante de reflexão crítica que apenas instrumentos visuais não possibilitam.
Bem, de
qualquer forma, o que deve ficar ressaltado é que este trabalho inicial mostra
a necessidade, desde o princípio, de ser executado em parceria com outros
professores, além dos de História: os de Geografia, os de Biologia, os de
Ciências etc. A interdisciplinaridade aparece, então, como fator determinante
da qualidade do trabalho que se executará.
Esse
trabalho de apresentação / questionamento sobre uma África rica e diversa
objetiva não só esclarecer aos alunos sobre algo desconhecido, mas inicia a
confrontação com um dos elementos mais complicados que, quase invariavelmente,
surge em sala de aula: a visão pré-concebida do aluno de uma África exótica,
uma África selvagem e não civilizada. Podemos aqui nos deter em pensar duas
causas para essa pré-concepção: a primeira, inegável, nos remete diretamente
para as mensagens veiculadas nos meios de comunicação de massa, principalmente
nos meios eletrônicos e que utilizam a imagem como linguagem (televisão,
internet, cinema, jogos eletrônicos...). Quem de nós nunca se deparou com
imagens desses veículos de comunicação / interação que remetessem a uma África
inóspita? Para além disso, e talvez mais determinante ainda para visões
pitorescas sobre os negros e a África, está uma maneira particular de olhar o
outro que o desqualifica, não permitindo interagir com ele, mas talvez apenas
espantar-se com. Esse olhar, então, é caracterizado por uma carga de
etnocentrismo que fundamenta a produção de imagens preconceituosas sobre a
África que acabam, por conseguinte, estimulando e legitimando o olhar
etnocêntrico.
Bem, apesar
de termos nos atrevido aqui a tentar decifrar o mecanismo ou um dos mecanismos
pelo qual se reproduz o preconceito contra a África e seus povos como objeto de
estudo, cabe dizer que chegar a conclusões definitivas não é nossa intenção e,
na verdade, necessitaria de um estudo mais aprofundado que não cabe nessa
rápida apresentação. A afirmação acima fica, então, como comentário, como uma
explicação sobre os caminhos que os preconceitos percorrem para se reproduzirem
nessa sociedade midiática na qual vivemos; hipótese que compartilho com vocês
para nos ajudar a perceber como os desafios que se colocam para uma nova
proposta de abordagem sobre o tema extrapolam a sala de aula. Na verdade,
envolvem toda a sociedade e necessitam de ações que dêem conta de requalificar
a imagem sobre a África e suas culturas como objeto de estudo, algo que passa,
penso, pelo caráter que cada escola e cada professor e professora dará ao
desenvolver a temática do negro e da África.
Gostaria de
falar agora sobre alguns pontos que me parecem dominar o debate sobre a África
e o negro no Brasil. Antes de tudo, é preciso dizer que as visões sobre o tema
muitas vezes não são gratuitas e nem são oriundas originalmente do senso comum,
mas estão presentes nos debates que a elite política e intelectual trava desde
a chegada dos primeiros navios negreiros ao nosso litoral.
Preferi
apresentar esses debates como se fossem compostos por lados antagônicos, muito
mais para facilitar sua exposição dentro da proposta desse painel do que para
reduzi-los, visto que, evidentemente, essas questões são muitas vezes mais
complexas e apresentam um número maior de posições entre dois pólos
antagônicos.
Feita a
ressalva, parece-me que o primeiro debate que se colocou foi o do negro como
selvagem ou civilizado. Esse debate é típico do período da escravidão e sobre
ele aparecem elementos como a raça, a religião, os costumes e a organização
política e social das comunidades africanas enquanto fatores de estranhamento
para os europeus que chegavam às costas da África já no século XV. Esse estranhamento
é sintoma do etnocentrismo do qual falamos atrás e que, vê-se, não é traço
cultural novo entre os europeus.
O binômio
selvagem x civilizado irá melhor expressar-se no século XIX através do debate
sobre a condição da escravidão enquanto desarticuladora do modo de vida e do
caráter dos negros ou, por outro lado, como educadora e civilizadora, debate
que se ligava aos interesses em torno da escravidão.
Entendida
como educadora e civilizadora, a escravidão permitiria um up grade
sócio-cultural do negro, mesmo que para isso tivesse que condená-lo à
vitimização do trabalho forçado. Esse discurso encontrou desdobramentos mesmo
entre os próprios negros, veja-se, por exemplo, um grupo dos chamados
“brasileiros” na Costa Ocidental Africana, negros escravizados e que, uma vez
libertados, retornaram à África e passaram a se envolver no comércio
transatlântico, inclusive o comércio de escravos, reivindicando maior atenção
dos seus interlocutores europeus por terem sido “educados” no Brasil e falarem
uma língua européia, o português.
Do outro
lado, a visão da escravidão como desarticuladora do modo de vida e do caráter
dos negros. Tão brutal seria a escravidão, tão essencialmente desumana, que
acabaria por desumanizar a essência dos negros reduzidos a ela. Os castigos, os
maus tratos, a precariedade da vida, desarticularia de tal forma os esquemas de
vida originais daqueles que foram escravizados que acabariam por condená-los a
uma condição marginal, subumana.
Claro está que os
defensores de visão civilizatória da escravidão encontravam-se entre os
comerciantes e senhores de escravos, enquanto aqueles que condenavam a
escravidão, ou não estavam fundamentalmente comprometidos com aqueles grupos,
ou foram sensibilizados pela face humanitária do pensamento liberal. De uma
forma ou de outra, pelo menos em uma coisa ambas as visões concordavam: o negro
era vítima da escravidão, fosse isso “necessário” ou não, e, como tal, era
sempre objeto que sofria uma ação externa, não era sujeito de sua própria
realidade. Esse ponto é muitíssimo importante porque gerará um debate que se
prolonga até os nossos dias: ora, se afirmamos a vitimização do negro pela
escravidão ressaltando o caráter violento e desarticulador desta, alcançamos a
percepção de quanto o regime escravocrata foi marcado pelo sofrimento extremo
de tantas pessoas sujeitas a ele. Porém, acompanhada dessa visão parece
vir, necessariamente, a conclusão de que tamanha violência acarretou a perda
total de si por parte do negro escravizado que, a partir de então, não é mais
ator de sua própria vida, mas ser passivo. Estamos diante do debate sobre a
visão do escravo enquanto ser ativo ou ser passivo, agente ou não de sua
história.
A historiografia do século
XIX, caracterizada pela visão do escravo como ser passivo, irá encontrar
contestação apenas nos anos 30 do século XX quando, em “Casa Grande e Senzala”, Gilberto Freyre
irá apresentar o negro como ativo formador do povo brasileiro enquanto
contribuinte no processo de miscigenação e de mistura de culturas
característico do Brasil. Entretanto, como sabemos, Freyre será criticado pois
teria conseguido, na verdade, apresentar uma visão branda da escravidão como
parte de um processo que desembocaria numa “democracia racial”.
Frente a essa visão, autores irão se
contrapor argumentando que a escravidão era essencialmente violenta e
desumanizadora, não podendo ser vista como elemento integrador do negro à
sociedade brasileira. Na década de 1960, Florestan Fernandes e demais membros
da chamada Escola Paulista de Sociologia irão apresentar uma visão da
escravidão a tal ponto desarticuladora da humanidade do negro escravo que seria
responsável pela “anomia” deste, ou seja, pela perda de sua própria visão como
ser humano capaz e ativo. Nessa mesma ver-tente, também se inclui Fernando Henrique
Cardoso e seu conceito de “coisificação” do escravo proposto em “Capitalismo
e Escravidão no Brasil Meridional”, de 1962.
Para nós, aqui, é importante perceber
que, se era verdade que o escravo se via como anômico e como coisa,
ressaltando-se daí o caráter violento da escravidão, também é verdade que tal
visão retira a possibilidade de se ver o negro escravizado como agente ativo na
sociedade escravista, inclusive na luta por sua liberdade.
Ora, se esse debate é tão complexo
entre os historiadores, tanto mais será para os nossos alunos nos ensinos
fundamental e médio, de tal forma que uma estratégia para um bom trabalho em
sala de aula que trate sobre o papel do negro enquanto participante da
sociedade brasileira passa pela compreensão desse debate. Evidentemente não se
espera reproduzi-lo em sala de aula, mas traçar uma estratégia que permita
abordar a qualidade do papel do negro na história do Brasil (como ator passivo
ou ativo).
Se prosseguirmos nos desdobramentos da
historiografia sobre o tema, veremos que nas décadas de 1970 e 1980 Ciro
Cardoso propõe o conceito de “brecha camponesa” para designar a possibilidade
que tinham certos escravos de terem espaços para organizarem-se familiarmente e
plantarem uma horta própria. Como se poderia esperar, se por um lado o
argumento reabilita o escravo negro como ser agente da história,
possibilitando-lhe mínima aspiração de organização econômica e familiar dentro
da escravidão, por outro parece reabilitar também a própria escravidão e lhe
retirar parte de seu caráter violento. Não por outro motivo, a resposta mais
frontal ao argumento de Ciro Cardoso será dada por Jacob Gorender em “A
Escravidão Reabilitada”, de 1990, onde o autor irá contestar a
possibilidade de “brechas” no sistema essencialmente violento da escravidão.
Nesse
debate, resta dizer que, desde a década de 1980, vários autores dedicaram-se a
pesquisas que acabaram não por reabilitar a escravidão, mas sim o papel ativo
do escravo na sociedade escravista como elemento de resistência aos seus
esquemas. Como exemplo, nos parece importante ressaltar uma conclusão de Robert
Slenes sobre as possibilidades de uma “brecha camponesa”: o autor ressalta que
o acesso eventual de um espaço para formação de uma família e de um roçado não
se caracterizaria como “brecha”, isto é, como espaço fora dos limites da
escravidão, mas como espaço permanente sob a tensão, sob a pressão dos
interesses do senhor, de tal forma que poderíamos sim falar no escravo como
sujeito ativo de sua história, agente “negociador” e lutador frente aos limites
a escravidão que, dessa forma, não seria nem benéfica ou branda, mas
continuaria essencialmente violenta.
Finda a
escravidão, talvez uma última questão deva ser ressaltada aqui: a mudança da
vi-são do negro como trabalha-dor para a do negro como vadio. Não estendendo o
assunto, é suficiente dizer que esta questão não compõe um debate
historiográfico, mas sim um fenômeno histórico próprio da introdução da
mão-de-obra assalariada e da imigração de trabalhadores europeus em
concomitância com o fim da escravidão no Brasil. Nesse cenário, o negro, até
então morejador e responsável pela produção (e não que nisso houvesse
alguma dignidade, pois não esqueçamos que a sociedade escravista é avessa ao
trabalho manual, sinal de ausência de nobreza), vê-se em desvantagem frente ao
imigrante branco, por preconceito racial e/ou por ausência de instrução, na
concorrência pelo trabalho assalariado.
O negro
egresso das plantations não encontra muitas vezes ocupação e passa a ser
visto como vadio (paradoxalmente, bem no momento em que o trabalho manual,
agora assalariado, começava a ser visto como fator de dignidade à luz do
liberalismo).
Parece-me,
portanto, fundamental que uma visão geral destes desdobramentos e debates sejam
de conhecimento do professor ao trabalhar, em sala de aula, sobre o negro e o
seu papel na sociedade brasileira, não para reproduzi-los, mas para não ser
surpreendido pelos resultados obtidos através de sua proposta de aula.
Mais
que qualquer outra coisa, parece-me claro que o conhecimento da história e o
enfrentamento direto com suas discussões e conclusões não é substituível por
qualquer campanha ou postura que se proponha, por mais que tais atitudes possam
estar recheadas de uma atitude digna e justa. A sala de aula não deve ser ambiente
para um discurso inflamado que pregue a regeneração da visão do negro, não pode
ser lugar para um discurso uníssono, a não ser que tal discurso brote
sinceramente do diálogo franco com os alunos. Não porque toda e qualquer
opinião possa ser aceita como equivalente (não, a história não se faz com
“achismos”, mas com o auxílio de teorias e de evidências documentais), mas
porque a argumentação histórica e a confrontação do senso comum com suas
conclusões e com seus debates são elementos suficientes e melhores para
despertar a atenção e a inquietação dos alunos e possibilitar uma revisão de
sua consciência e de sua postura.
Essas mudanças pessoais acabam por aflorar,
esperamos, quando os alunos são capazes de perceber como a contribuição do
negro foi decisiva para a formação do Brasil, como todos nós usufruímos algo
ainda hoje de seu trabalho sob a escravidão, como nossa cor, fruto da
miscigenação, deve-se, em parte, aos tantos negros africanos trazidos ao nosso
país. Quanto àqueles que eventualmente possam argumentar que não têm ancestrais
negros e que nada a eles devem, um argumento histórico é mais que eficiente:
mostrar como a cultura brasileira está impregnada de elementos africanos, de
modo que todos nós, sejamos negros ou não, temos algo do paladar, do ritmo e do
esforço negros.
*Texto apresentado no painel sobre
Educação Anti-Racista promovido pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul em parceria com a Prefeitura Municipal de Porto
Alegre em 26 de outubro de 2004 no auditório do Planetário.
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Roger Elias é licenciado e
bacharelando em História pela UFRGS. Professor substituto do Colégio de
Aplicação da UFRGS.
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