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Texto sobre a Igualdade nas relações raciais de Ana Lúcia Silva Sousa


Igualdade nas relações raciais - as
leis fora do papel

Ana Lúcia Silva Souza

(...) Me assusta e acalma
ser portadora de várias almas
de um só som comum eco
ser reverberante
espelho, semelhante
ser a boca
ser a dona da palavra sem dono
de tanto dono que tem.

(O Poema do Semelhante  - Elisa Lucinda)


Não precisamos mais discutir sobre a  existência ou não do racismo. Ele existe. É o que diz o sancionamento da lei 10.639/03, regulamentada pelo Parecer 003/2004, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, objetivando a superação desta situação e desfazendo a história de preconceito e discriminação racial.
Ressalta-se que esta lei resulta de um longo processo de luta, de discussões, de reivindicações do movimento negro e de setores progressistas da sociedade. Se por um lado ela mostra o reconhecimento e a legitimidade das reivindicações, por outro nos desafia ainda mais, uma vez que a efetivação desta, e de outras leis, demanda definições e estabelecimento de políticas públicas capazes de sustentá-la.
Mais que nunca é necessário ter disposição para a mobilização e a organização coletiva. A começar pelos espaços educativos nos quais atuamos.
Por onde começar? Quais podem ser as ações e práticas de educa-dores e educadoras, formais e não formais, que reconhecem a complexidade da questão?

Histórias de vida: porta de entrada para descobrir as diferenças

Para ampliar o espaço de discussão e os conhecimentos em torno da cultura afro-brasileira e africana, é fundamental indagar a respeito das raízes da discriminação racial. Uma delas está na crença de que existe a desigualdade natural ou biológica entre as raças. Ou seja, há um grupo superior e outro inferior, o que dá o direito de oprimir e discriminar pela aparência ou traços tais como tipo de cabelo, cor de pele.
Note-se que a discriminação racial é passível de ser verificada por ser ação visível. Manifesta-se por meio de piadas, apelido constrangedor ou que inferiorize, coações por conta da aparência física e até mesmo constrangimentos que desfavoreçam a freqüência ou permanência em determinado espaço, o que muito acontece na escola.
Estas ações verbais ou não verbais são alicerçadas em preconceitos, imagens e crenças já concebidas e que, por serem intangíveis, são difíceis de serem verificados, mantêm-se imiscuídos nas relações cotidianas e somente podem ser combatidos por meio da reeducação das relações sociais.
Acreditamos que, independente de área de conhecimento, é necessário pensar em projetos que, baseados nas perguntas, dúvidas e questionamentos e buscas de respostas coloquem os sujeitos em situações de interação.
É na convivência nos núcleos familiares, na rua e no trabalho, e na escola, um dos mais importantes espaços de socialização que aprendemos de nós e dos outros.  Por meio da interação social, do contato com o outro, as pessoas se mostram, se conhecem. Nesta relação, nós nos constituímos, constituímos nossa identidade e também ajudamos a constituir outras. São as histórias de vida de cada um.
Desta perspectiva, trabalhar com histórias de vida em sala de aula pode ser um caminho para incentivar a troca de idéias, um meio de desfiar a trama, conhecer e valorizar as experiências vividas junto a nosso grupo de origem. Sem pensar em ordem cronológica de acontecimentos, o que importa é a construção de um itinerário cultural e social, o que contribui para maior identificação e cumplicidade, fortalecendo a auto-estima dos envolvidos neste processo.
O trabalho com histórias de vida pode envolver toda a comunidade escolar em um projeto cujo título pode ser: Quem somos nós. Dependendo da faixa etária, do espaço e do tempo, pode-se contar com os fatos, escrita e depoimento oral nas etapas de gerar as informações, socializá-las e finalmente sistematizá-las pensando nos passos seguintes.
Espera-se que esta primeira fase desencadeie dúvidas e curiosidades sobre a formação da cultura do brasileiro, sobre a cultura negra, sobre a necessidade de respeito e valorização de todas as culturas, o que será respondido por meio de projetos, pesquisas e outras atividades ajustadas às propostas e planejamento mais gerais em diversas áreas do conhecimento, em especial arte, história e literatura.
A mesma pergunta — quem somos nós — será feita na reunião de responsáveis (pais, mães, tias, avós, irmãos). Neste caso, depois de explicar o projeto, a conversa pode ser mais direta. Que tal convidar os presentes para compor duplas e conversar sobre questões que abordem a origem familiar, os hábitos culturais e de lazer, religiosidade, gosto musical, marcas importantes da infância etc.? O cruzamento desses dados com os dos alunos pode fornecer informações importantes sobre as igualdades, sobre as diferenças etc. A enquete pode ser estendida a toda a comunidade escolar.
E em 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra. Nada de projetos pontuais, uma vez que estas e outras questões estejam permanentemente contempladas no projeto político pedagógico da escola. Todo dia pode ser dia de ensinar e de aprender. Aos poucos e sempre, ao longo de um processo que possa consolidar as aprendizagens de conhecer o outro, o semelhante e o diferente. 

Para continuidade

v revisão bibliográfica - Pesquisar é o chamado do dia. Onde estão as revistas, os panfletos, os jornais, livros de referência e os livros infanto-juvenis que tratam da questão? Na sua casa, na casa dos alunos (acredite, muitos deles têm material), na biblioteca da escola, na biblioteca da cidade. Em feiras e congressos afins procure por esta temática junto aos expositores. Há muito, ONGs e ditoras alternativas produzem materiais ricos em idéias que informam posturas e práticas.   A Internet também é um excelente meio de pesquisa e traz aportes para a elaboração de material.

v formação de grupo de estudos na escola - Um primeiro exercício pode ser analisar, visitar documentos que estão em diálogo com a Lei 10639/2003. A Constituição Brasileira de 1988, em espacial o capítulo que trata da educação, as leis anti-racistas que fazem parte da história do Brasil e a Lei de Diretrizes e Bases 9394/96  — ver artigo 26 parágrafo 4 e o Parecer 003/2004, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana . Vale discutir as potencialidades e limites desses documentos legais, ao situá-los num quadro político, econômico e social mais amplo. 

v estabelecer contato com grupos do movimento negro e com outros que têm aproximação com questões de combate a discriminações e marcadamente visam intervir e promover a igualdade das relações sociais e raciais. Quais as implicações do uso dos termos raça, igualdade, etnia, afrodescendente, afro-brasileiro, negro, preto, mulato?  

A promoção da igualdade das relações sociais requer ampliar os sentidos que podem ter as palavras e as práticas. Tolerância, por exemplo, é mais que suportar ou permitir a existência e a presença de alguém. Respeito precisa ser bem mais que a cordialidade. Igualdade precisa ir além do jurídico constituído pelo princípio segundo o qual todos os homens são iguais perante a lei.
Como se destroem os pré-conceitos? Por meio da disseminação de outras idéias e concepções capazes de promover e sustentar comportamentos favoráveis à convivência e ao respeito, à igualdade nas relações entre homens e mulheres. Veja o que diz O Poema do Semelhante, de Elisa Lucinda.

Para saber mais

ARAÚJO, Joel Zito.  A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira.  São Paulo: SENAC, 2000.  323 p.
CAROSO, Carlos, BACELAR, Jeferson (Orgs.).  Faces da tradição afro-brasileira: religiosidade, sincretismo, anti-sincretismo, reafricanização, praticas terapêuticas, etnobotânica e comida. Rio de Janeiro: Pallas, 1999.  346 p.
GOMES, Nilma Lino.  Educação e relações raciais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação.  In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. [Brasília] : MEC, 2001.  p. 137-168.
MONTENEGRO, Antonio Torres.  Abolição. São Paulo: Ática, 1988.
NASCIMENTO, Elisa Larkin (Org.). Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira.  Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.  152 p.
SOUZA, Ana Lucia Silva.  Negritude, letramento e uso social da oralidade. In: CAVALLEIRO, Eliane (Org.).  Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola.  São Paulo: Summus, 2001. p. 179-194.

Ana Lúcia Silva Souza é Doutoranda em Lingüística Aplicada (Unicamp IEL). Mestre em Ciências Sociais (PUC-SP). Desenvolve pesquisa sobre Práticas de Letramento no Movimento hip hop. Professora universitária na área de Sociologia da Educação. Assessora projetos sobre práticas de leitura e dinamização de acervo junto a educadores e adolescentes. Na ONG Ação Educativa integra a equipe de formação de educadores de jovens e adultos. Integra a Associação Brasileira dos Pesquisadores Negros -  ABPN -  SP.

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